O autor deste texto é Andrew Costa, bacharel em Comunicação Social pela UFF, fundador do coletivo antiproibicionista Cultura Verde e membro da coordenação estadual Drogas e Diretos Humanos do Rio de Janeiro.
A política de proibição e repressão aos usuários de drogas, além de não ser eficiente na prática, tem levantado números preocupantes no último período. Em 2011 o tráfico de drogas passou a ocupar o primeiro lugar entre os crimes que mais encarceram pessoas no Brasil. Segundo o Ministério da Justiça essa tipificação penal já corresponde a 24% das prisões no país e o aumento deste foi de 284% só durante a última década.
Mais precisamente, nos últimos 16 anos o Brasil triplicou o seu número de encarceramento e 40% dessa massa (cerca de 500.000 pessoas) são negros, pobres e estão na faixa de 18 a 24 anos. Outro dado contrastante é a escolaridade das pessoas encarceradas: 46% destas não completaram o ensino fundamental enquanto os indivíduos com ensino superior completo correspondem a menos de 0,5% do total de presos.
O Núcleo de Estudos da Violência da USP constatou que o perfil do traficante mais reprimido pela ação policial é o pequeno traficante, o traficante pobre. A partir do estudo de 667 autos de flagrante percebeu-se que mais da metade (57%) não possuíam antecedentes criminais, 87% dos presos foram encarcerados sem qualquer tipo de assistência jurídica e em 55% dos casos foram presas pessoas que não estavam envoltas em nenhum tipo de violência em seu cenário de apreensão. Em resumo, a atual política proibicionista tem prendido prioritariamente os traficantes pobres de maneira arbitrária e sem correlação razoável entre sua atividade real e a pena a que é submetido.
Política de drogas e encarceramento
No período que antecede os Mega-Eventos Esportivos nas principais cidades brasileiras, a política de drogas tem se intensificado e a guerra às drogas já tem legitimado o encarceramento de cerca de 500 moradores em situação de rua na região de Pinheiros em São Paulo e 600 no centro do Rio de Janeiro, só para citar dois exemplos. Sem somar a essa conta as diversas outras cidades onde a problemática também se instala, já contamos mais de 1.000 pessoas presas pelo fato de serem pobres e sob a chancela e legitimação de um processo de proibição seletiva às drogas.
O recorte de classe dado na proibição parece ser claro; basta enxergarmos quem está sendo preso e visualizar um cenário claro de qual é o setor social que está sendo encarcerado em cifras de grande magnitude enquanto o uso de drogas continua sendo prática comum e sem repressão entre as elites de nossa sociedade.
Em meio a este processo é importante destacar o fenômeno de higienização urbana que os grandes centros, em especial as cidades-sede da Copa e Olimpíadas, vêm recebendo e irão receber para os mega-eventos. Além da política proibicionista, a necessidade de “limpar” as cidades de sua população pobre também tem legitimado o retorno de uma política manicomial preocupante: a internação compulsória.
O Rio de Janeiro tem sido pioneiro nesta política de criar estruturas que tem representado a volta da lógica manicomial e um grande retrocesso para a reforma psiquiátrica brasileira conquistada pelos movimentos sociais no campo da saúde, que há anos rompeu com a prática de encarcerar pessoas com problemas psicológicos e consolidou práticas mais humanas em um campo de saúde mental.
Autorizados a apreender e “tratar”
Em síntese, as comunidades terapêuticas e outras organizações não governamentais são organismos de administração privada ligados a grupos religiosos que recebem verbas do Estado para capturar usuários de crack em situação de rua e “tratá-los” em seus abrigos. A relação econômica entre grupos religiosos e o Estado também nos alerta para uma lógica preocupante que é a do lucro com o encarceramento de pessoas.
Um relatório recente do Conselho Federal de Psicologia também afirma que essas comunidades terapêuticas estão recolhendo crianças e jovens e dopando-as com uma mesma dosagem de medicação para todas sem avaliação médica ou qualquer outro tipo de triagem. Vale lembrar ainda que poucas vezes direitos humanos foram tão fortemente violados em fenômenos tão legitimados pela sociedade sob o discurso de que a internação compulsória é um mal necessário.
A internação compulsória não só não é necessária, como a prática manicomial é contraditória com a Política Nacional de Saúde Mental, apoiada na lei 10.216, que busca consolidar um método de atenção à saúde mental aberto e comunitário que garanta a livre circulação dos “doentes mentais” pelos serviços, pela comunidade e pela cidade.
Esse programa conta com o que é o modelo defendido pelos movimentos sociais da saúde mental com Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) ou CAPS – AD (Álcool e Drogas) para casos específicos de usuários com problemas de drogas. Para além desses projetos, as clínicas de rua e a redução de danos também são alternativas à guerra que tem se travado contra os usuários de crack e aos fenômenos das cracolândias.
A ideia dessas medidas é ressocializar usuários a partir de um processo onde o paciente esteja convencido de que precise ser tratado e com a utilização de métodos terapêuticos diversos, sempre voltados a pensar os indivíduos como resultado de anos de desassistência e segregação por parte do estado e não com a leitura simplista de que apenas a opção pelo uso de drogas é a raiz de todo problema e que podemos resolve-lo apenas obrigando o usuário à abstinência. A violenta política manicomial deve ser respondida com a alternativa da música, da arte e dos direitos humanos.
O “combate” enquanto lógica de guerra
Apesar das experiências de repressão aos usuários de drogas serem falidas e os movimentos sociais apresentarem política de atenção a essas problemáticas pelo viés da saúde, da recuperação dos usuários e respeitando os direitos humanos, a Secretaria Nacional Anti-Drogas parece mesmo estar convencida de que a solução não é acolher e tratar usuários, mas investir em mais repressão e violência junto ao seu tratamento inadequado.
A materialização do que se argumenta é o fato de estar chegando pelo programa do Governo Federal “Crack é possível vencer!” mais de 250 armas taser (pistola de choque que pode chegar a 5 mil volts e que recentemente a polícia utilizou para matar um jovem na Austrália), 750 sprays de pimenta, bases de monitoramento e câmeras de vigilância para combater os usuários de crack no Rio de Janeiro. A política de drogas de nosso país, hoje, dá ordem clara de que a solução para a problemática do tráfico e das cracolândias é mais guerra.
Em meio a todo esse preocupante cenário que está apontado como política federal para o Brasil nos próximos anos, vale lembrar ainda que Felipe Calderón, quando resolveu assumir a postura de guerra ostensiva às drogas como resposta à dinâmica dos narcóticos em seu país, colheu uma das estatísticas mais assombrosas de que se tem notícia em nossa história mundial recente: desde 2006 o México já conta com mais de 50.000 mortos e, hoje, das 10 cidades mais violentas no mundo 5 são mexicanas.
Em São Paulo, a intensificação da repressão policial pela política de repressão seletiva às drogas foi tamanha que a cidade já chega à marca de mais de uma centena de homicídios só no ano de 2012, a pobreza largamente assassinada tem respondido com novos homicídios e ataques a policiais fazendo com que o ciclo vicioso de violência tenha saído do controle do Estado enquanto as mortes não param. Mesmo assim, a guerra proibicionista continua e é reafirmada por autoridades das mais diversas a todo momento.
Posto esses elementos, fica claro compreendermos como a proibição seletiva e a lógica manicomial são políticas que tem se intensificado fortemente em nosso país por meio da política de drogas. A proibição é uma política de Estado que vem legitimando a criminalização da pobreza e a internação compulsória vem limpando a cidade dos pobres que insistem em continuar ocupando os centros urbanos.
Publicado originalmente no jornal Tribuna Amapaense, Nº 418, 19 de julho de 2014.
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