democracia, Entrelinhas, ideologia, política

Goleada às avessas

A molecada dos dois times chega para a pelada. Os capitães se encontram no centro do campo e fazem uma aposta, quem ganhar leva o montante. Confiante na vitória e apressado em embolsar o dinheiro, André, capitão do Máquina, deixou as regras nas mãos de Tadeu, dono da bola que jogava pelo Campanário, time da rua da igreja que sabidamente só levava goleada. A equipe nunca teve um bom atacante, seus zagueiros não se entendiam e o goleiro era de dar dó. Começada a partida, as regras se modificaram na velocidade com que o Máquina fazia gols. Não vale isso, não vale aquilo. Faltas eram invertidas ao bel prazer do dono da bola. A diferença entre os times era tanta que mesmo o artifício de mudar as regras não impediu uma goleada por oito a zero. Terminada a partida, o capitão do time da rua da igreja pega a bola e, com o valor da aposta no bolso, vai se distanciando do campo. André corre até ele e exige o dinheiro. Confiante nos moleques do Campanário que, apesar de péssimos jogadores de futebol, eram grandes e bons de briga, Tadeu dá uma risada cínica e debochadamente, diz: “- Última mudança de regras, ganha a partida o time que levar mais gols”. Os esguios meninos do Máquina veem estupefatos o dinheiro de sua vitória escoar das mãos.

Autonomia e liberdade são base da democracia. O termo autonomia refere-se a algo que nos é central, a capacidade de gerirmos nossa vida, a liberdade moral ou intelectual para definirmos as leis que nos regem e, portanto, a independência. Em oposição a esta, há a heterônoma, em que estamos sujeitos à vontade de outrem, nossos arbítrios e desejos de nada interessam, pois o controle é externo, oriundo de outros indivíduos. Autonomia e liberdade, portanto, andam de mãos dadas e, se utilizadas em uma sociedade que permite aos indivíduos participarem das decisões, temos uma democracia, o governo do povo.

A democracia, apesar de todas as promessas que a ela sempre estiveram apensadas, tem sido duramente questionada. Comportamos-nos como se não estivéssemos preparados para a efetivação de um governo do povo. Reclamamos dos governantes por nós escolhidos, mas teimamos em entregar aos outros nosso direito de decidir. Governos ou direções que delimitam como estratégia de ação, a consulta aos representados sobre temáticas relevantes, são questionados: “Nós os elegemos e lhes delegamos poder, então por que eles ainda vêm perguntar o que a gente quer? Por que não fazem logo as coisas”? É exatamente neste ponto que reside o principal problema. Este tipo de questionamento implica em rasgarmos nossa autonomia e entregarmos integralmente o poder aos outros, tão somente porque foram eleitos em um determinado momento. Ao agir assim, abdicamos de nossa autonomia, independência e liberdade.

Eleições são eivadas de problemas. Entre eles o fato de que o poder econômico tem, muitas vezes, definido o resultado dos pleitos e as ações dos políticos eleitos. Em um processo eleitoral se define, eixos gerais de ação que são apresentados aos eleitores. Em muitos pleitos nem isso! Quando as ações são decorrência direta dos eixos de ação especificados no “plano de governo” apresentado pelo candidato ou pela chapa, então, o representante deve executá-las sem maiores questionamentos, afinal não há contradições ou dúvidas pertinentes. Está a fazer aquilo para o qual foi eleito para fazer.

Entretanto, em muitos casos, as ações específicas, ou os elementos para além dos eixos do “plano de governo”, não foram definidas previamente, não houve tempo para que amadurecessem ou fossem devidamente discutidas. Como proceder em tal situação? Direções ou governos que se pretendam realmente democráticos e que estejam centrados nos interesses de seus representados devem voltar a estes, consultá-los, entender seus desejos e quereres, acatá-los e esforçar-se em implantá-los.

Abster-se desta permanente consulta implica obrigatoriamente em um processo autocrático. Em imaginar-se detentor de todos os conhecimentos e portador da verdade, bem como de assumir-se como aquele que sabe os desejos de todos. Mas somos tão diversos! Pensamos, queremos, imaginamos, desejamos coisas tão variadas que são, por vezes, contraditórias. Como pode um representante, então, colocar-se na condição de decidir sem consultar seus representados? Como pode o representado reclamar que seu representante está a lhe consultar sobre o que deseja. Devemos atuar na democracia não apenas elegendo, mas participando e fazendo os representantes efetivarem as ações que são frutos de nossos desejos. Abdicarmos do poder de participar e decidir significa correr o risco de fazermos muitos gols e descobrir que perdemos de goleada.

Publicado originalmente no jornal Tribuna Amapaense, nº 361, 8 de junho de 2013.

Outros textos de Arley Costa podem ser lidos em https://arleycosta.wordpress.com/entrelinhas/

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