democracia, ideologia, política

Quantas mortes cabem a Bolsonaro?*

Bolsonaro cumprimenta apoiadores em ato no Palácio do Planalto
Caronte, de Gustave Doré

Morto! Não pertencia mais àquele lugar. Era preciso atravessar Aqueronte, o rio da dor, e singrar do mundo dos vivos para o dos mortos. Apenas Caronte, barqueiro dos mortos, fazia a viagem entre as margens, atravessando as almas. Pôs-se a caminho. Chegou ao rio da dor, vislumbrou imensidão de almas em sofrimento. Gemiam e se contorciam, enquanto fitavam com olhos taciturnos a outra margem, o mundo dos mortos. Sofriam, mas não atravessavam. Não atinou com a razão, sequer pensou no fato. Como ingressavam as últimas almas para mais uma travessia, acelerou o ritmo e buscou embarcar. Não conseguiu. Viu-se bloqueado, antes que seus pés tocassem o interior da embarcação. Fora impedido por Caronte que lhe cobrava o óbolo, a moeda de pagamento. Lembrou que os vivos, temendo que as almas voltassem para atormentar, colocavam moedas na boca dos mortos para o pagamento do barqueiro da morte. Explorou em vão a própria boca, não havia óbolo, apenas o vazio. Crivado de espanto, entendeu, de súbito, seu destino. Graças à mesquinhez de Caronte, eternamente preocupado com o dinheiro, seria mais uma das pobres almas que, não podendo pagar a travessia, vagaria e agonizaria por eras às margens do rio da dor.

Muitas almas sairão do mundo dos vivos durante a pandemia do Covid-19. Quantas destas mortes cabem a Bolsonaro? Seria justo colocar na conta do presidente todas as almas brasileiras que atravessarão o Aqueronte? Seria correto ignorar que diversas mortes terão relação direta com a política de morte (necropolítica) do presidente? Consideremos essas questões detalhadamente.

Todas as mortes decorrentes do Covid-19 podem ser atribuídas a Bolsonaro? Todas, não! O vírus não tem relação direta com o presidente, apareceu no mundo e segue produzindo mortes globalmente. Mas a política de enfrentamento ao vírus, que cabe ao presidente, vai resultar em mais ou menos mortes, dependendo do acerto das medidas adotadas. A OMS e todos os países ao redor do mundo têm trabalhado com o isolamento social horizontal buscando “achatar a curva” com resultados importantes na prevenção de mortes. Países que pensaram diferente, como Itália, Reino Unido e Estados Unidos, se curvaram à realidade e acabaram por adotar o isolamento social.

Bolsonaro, por sua vez, insiste em salvaguardar apenas as pessoas do grupo de risco e incentiva o contágio acelerado, sob a equivocada premissa de que isso preservará a economia. A política adotada pelo presidente provoca um pico acentuado de internações e mortes que extrapolará a capacidade de atendimento do sistema de saúde. Assim, todas as mortes que vierem a ocorrer em razão do número de pacientes exceder a capacidade do sistema caem na conta da necropolítica do governo. Sem mas, nem meio mas, as mortes decorrentes da incapacidade de atendimento, são mortes que cabem a Bolsonaro!

Ah, e o PT? Questão válida! Podemos culpar a fragilidade do sistema de saúde decorrente de governos anteriores? Sim, podemos e devemos, pois há muito o SUS agoniza com políticas de baixo investimento. Críticas merecidas foram feitas aos presidentes anteriores por investir pouco e sucatear o SUS quando governavam o país. Agora, temos outro presidente e são as políticas dele, sem desconsiderar o país que recebeu, que reduzirão ou ampliarão o número de mortes. Contudo, é necessário lembrar que a atuação do governo Bolsonaro desde que assumiu não se direcionou a resolver os problemas existentes e fortalecer o SUS, ao contrário, sempre buscou reduzir ainda mais os investimentos em saúde.

Para Bolsonaro e Guedes, se gasta demais com a máquina pública, incluída a saúde. A política neoliberal de enxugamento do Estado, reduzindo o investimento em saúde (equipamentos, insumos, pessoal…), limitando os gastos com a área social (conforme a malfadada Emenda Constitucional 95), entre outras ações, mostram que a política deste governo pegou um sistema frágil e o fragilizou ainda mais. O ministro da Saúde, Nelson Teich, alinhado com o presidente, ao falar da compra de respiradores para o período de crise, disparou: “O que você vai fazer com eles depois?” Ou seja, salvar vidas não é importante, evitar gastos com equipamentos, é. Então, sim, há culpa de governos anteriores, mas este governo, ao avançar em sua política neoliberal, destruindo o SUS e reduzindo profissionais e recursos, limita ainda mais a capacidade de atendimento da saúde. Então, as mortes que ocorrerem por exceder a capacidade de atendimento do sistema de saúde são mortes que cabem a Bolsonaro.

É preciso considerar ainda as ações de Bolsonaro que auxiliaram a dispersar o vírus, fazendo a curva acelerar e o número de casos estar acima da capacidade do sistema de saúde. O presidente atuou como dispersor do vírus através dos atos e marchas que convocou e apoiou; do incentivo permanente para que as pessoas fossem para as ruas; do espetáculo midiático quase cotidiano de não cumprir as recomendações do ministério da Saúde e da OMS; dos discursos direcionados aos autônomos e pequenos empresários de que deveriam voltar ao trabalho. Além disso, é razoável considerar a hipótese, muito provável, de que estando e se sabendo contaminado (nunca permitiu a divulgação do resultado do seu exame para a Covid-19), Bolsonaro tenha dispersado direta e intencionalmente o vírus ao contatar pessoas, incluindo apoiadores e membros do governo. Todas essas ações do presidente contribuíram para a aceleração da curva de contágio e, assim, as mortes que vierem a ocorrer porque o contágio foi acelerado, ultrapassando a capacidade de suporte, cabem a Bolsonaro!

Apenas as mortes do Covid-19 podem ser atribuídas a Bolsonaro? Não, afinal quando a capacidade de suporte do sistema tiver sido ultrapassada, qualquer pessoa em qualquer emergência (acidente de trabalho, atropelamento, fratura, avc…) não poderá ser atendida prontamente pela falta de leitos, equipamentos e profissionais. Portanto, Bolsonaro é culpado por todas as mortes, mesmo aquelas não oriundas do Covid-19, decorrentes da falta de atendimento que venha a ocorrer nos momentos em que a demanda ultrapassar a capacidade de suporte do sistema.

Além disso, é necessário recordar que, junto com Guedes, Bolsonaro é o dono do cofre da União. Cofre que eles buscam manter fechado para o povo, embora fique escancarado para o capital rentista (ao qual destinaram mais de 1 trilhão de reais logo no início da epidemia). Para a população, liberações a conta-gotas e a contragosto associadas às ameaças de que, sem o suporte da União, estados e municípios irão quebrar enquanto tentam salvar vidas. Bolsonaro ameaça deixar os gestores estaduais e municipais em condição de penúria, em vez de assumir políticas de resgate econômico para que possam funcionar em tempos de crise e salvar vidas.

O saldo desse cômputo é o número de mortes que cabe a Bolsonaro e aos bolsonaristas que apoiam a política de morte. Não importa que diga “E daí?”, “Não sou coveiro”, “Quer que faça o quê?” ou “Eu sou Messias, mas não faço milagres”, qualquer pessoa que venha a morrer porque o colapso do sistema não permitiu o atendimento adequado, morreu porque o presidente implantou uma necropolítica onde a economia e o interesse dos grandes rentistas está acima da vida humana. Tal qual Caronte em sua mesquinhez, Bolsonaro, preocupado apenas com o dinheiro, condenará muitos a sofrerem às margens do rio da morte. Então, durante a pandemia, qualquer um que venha a perder um parente ou um amigo por conta da saturação do sistema de saúde pode dizer sem medo de errar: “Essa morte cabe ao presidente Bolsonaro!”

* Publicado originalmente no portal EOL em 06/05/2020: https://esquerdaonline.com.br/2020/05/06/quantas-mortes-cabem-a-bolsonaro/

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Em tempos de covid-19, sacrifique-se o covard-38!

Chamas explodem no ar, a boca do vulcão expele magma reluzente e flamejante, porções de lava principiam a escorrer do alto da montanha rumo às pessoas que habitam no sopé. Aterrorizados, os moradores da ilha perguntam-se sobre os erros e pecados que teriam provocado a ira dos deuses. Oferendas são lançadas à cratera, mas as labaredas permanecem incólumes. Angustiados e temerosos, decidem pelo sacrifício humano. Uma pessoa, escolhida pelo líder para o ofício sagrado, é entregue às chamas para aplacar a fúria divina. Graças ao sacrificado, os desmandos são expiados, os deuses se acalmam, o desastre natural se esvai, todos respiram aliviados e a vida cotidiana retorna à normalidade.

Em tempos de covid-19 estamos todos sendo chamados ao sacrifício, a abrir mão dos prazeres da vida cotidiana e ficarmos enclausurados em nossas residências, limitados em deslocamentos e nas atividades com as quais podemos nos envolver. Tudo para que o coronavírus não se alastre rapidamente, trazendo caos ao sistema de saúde e, consequentemente, ampliando o número de mortes.

É bom que fique evidente que na crise não morrerão apenas os acometidos pelo novo vírus. Com os leitos totalmente ocupados em hospitais entupidos, morrerão também as pessoas que tiverem enfarto, acidente vascular, crise respiratória, se envolverem em acidente de automóvel, sofrerem corte profundo, que forem atropeladas, baleadas… Sim, independente das falas inconsequentes de alguns e das carreatas da morte clamando que as pessoas venham às ruas, deixar o vírus se espalhar significa condenar à morte também as pessoas não infectadas pelo coronavírus e que, em condições normais, seriam salvas. Em tempos de covid-19, as pessoas não encontrarão um leito de hospital vazio, independente do problema de saúde. Ou seja, para o bem de todos, o sistema de saúde simplesmente não pode entrar em colapso!

Todos estarão em risco, não apenas os infectados com o coronavírus! Isso é o que defendem as autoridades em epidemiologia de quase todos os países, presidentes e primeiro-ministros, governadores e prefeitos, a Organização Mundial da Saúde e, inclusive, o ministro da Saúde no Brasil. Por isso, mundo afora se há padronizado uma política que busca, de todas as formas, restringir a rápida contaminação. O distanciamento social, as quarentenas e as interdições aliadas à ampla testagem e ao controle dos infectados asseguram uma difusão mais lenta e gradual da doença, permitindo que o sistema dê conta dos casos graves de covid-19 e também daqueles com outras morbidades que necessitarem de cuidados intensivos.  

Avesso ao mundo, Bolsonaro critica as práticas de saúde difundidas e que têm assegurado os melhores resultados sob a pandemia. Discordando veemente do seu ministro da Saúde e das políticas que ele mesmo assinou, insiste que as pessoas devem voltar imediatamente à rotina e deixar-se infectar. O presidente quer que deixemos morrer parentes e amigos queridos aos montes em um sistema colapsado que não conseguirá atender nem aos contaminados pelo vírus, nem aos que buscarem socorro por outras razões.

Bolsonaro defende que sigamos ao trabalho, enquanto pilhas de corpos e caixões se acumulam diante de nossos olhos, a exemplo do que vem ocorrendo na Itália. Isso é ignominioso! A proposta é tão esdrúxula, que Bill Gates, magnata da informática, afirmou que não podemos “simplesmente retomar a economia e ignorar a pilha de cadáveres ao lado”. Falta humanidade na proposta de Bolsonaro, para dizer o mínimo. Para minimizar a podridão fétida de sua horrenda proposição, lembra de que haverá recessão, quebradeira de empresas, desemprego, fome e mortes na onda econômica negativa que se seguirá. Aviso inócuo! Bolsonaro fala o que é óbvio para todos. Estão todos sabendo disso e já estão pensando em como agir com o descalabro econômico futuro. Mas isso não significa, nem pode significar, entregar a população à morte nem sacrificar e enterrar, junto com os cadáveres, o que há de humano em nós.

O presidente do país deve ser um líder. Liderança se expressa em ações. Assim, espera-se de um líder em momentos como esse, que seja humano e cuide das pessoas na crise sanitária; que seja gestor, e assegure o funcionamento do país na crise econômica instalada e na que se seguirá; que se preocupe com o país e não com as eleições de 2022, as quais Bolsonaro parece já estar disputando. Cuidar das pessoas é assumir as melhores práticas sanitárias possíveis, aquelas que têm se mostrado frutíferas ao redor do globo (Sim, a terra não é plana!) e implantá-las de modo a reduzir, ao mínimo, mortes e sofrimento. Ser um gestor na crise instalada, é assegurar a sobrevivência dos trabalhadores informais e dos desempregados, é não permitir que um funcionário da iniciativa privada fique desempregado ou meses sem receber, é não cortar o salário dos servidores públicos, é assegurar a condição de existência de micro, pequenas e médias empresas, é descobrir que nessa hora os privilegiados, os super-ricos, podem e devem ser chamados a colaborar com uma sociedade que tanto os beneficia. Ser gestor da crise econômica futura é já começar a organizar o país para o pandemônio que se seguirá, pensando em abrir frentes de trabalho, assegurar renda mínima para os que estarão privados de ofertas de trabalho e da possibilidade de comer, diminuir as desigualdades sociais, ampliar o Estado como mecanismo garantidor de condições de sobrevivência, gerador de empregos e potencializador da economia.

Ser líder não pode significar, como nos sacrifícios de momentos passados, apenas escolher quem serão os lançados à cratera do vulcão. Bolsonaro está ensandecido, o Deus-Mercado está exigindo sacrifícios e ele busca de todas as formas atendê-lo. Antes da crise do covid-19 começar, buscava, junto com Paulo Guedes, ofertar recursos oriundos do corte dos ganhos e vencimentos dos trabalhadores e aposentados, dos servidores públicos e dos trabalhadores da iniciativa privada, dos pequenos empresários, dos pobres e da classe média. Agora que a pandemia se instalou, quer aproveitar a crise para aprofundar esses sacrifícios e decidiu ofertar vidas humanas. “Que morram alguns!”, diz desavergonhadamente. Em nome de salvar a economia do seu governo e sua própria pele, alucinado, Bolsonaro decidiu por sacrifícios humanos.

Sacrifícios humanos para apaziguar a ira dos deuses sempre estiveram presentes na história da humanidade. Virgens, crianças, populares, muitos vieram a cumprir o sacrifício. Aparentemente, nunca os líderes se dispuseram, eles próprios, a assumir o ofício sagrado de ser a oferenda. É fato que o atual presidente não é um líder, mas é possível que oferecer Bolsonaro (não sua morte, mas sua queda por renúncia, afastamento ou impeachment) tranquilize o Deus-Mercado. Então, já considerando Bolsonaro em seu futuro partido, o 38, devemos, para aplacar o Deus-Mercado, em época de covid-19, sacrificar o covard-38!

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