Entrelinhas, ideologia, manifestações, movimentos sociais, política

Um bilhão de mulheres*

Cartaz da Marcha das Vadias 2012, Teresina, Piauí.

A água escorre pelo corpo. O banho, refrescante, é o início da preparação. De frente para o armário, a tez ainda molhada, escolhe as vestes. Fita as opções, pega uma peça, coloca-a em frente ao corpo, olha o reflexo no espelho e imagina-se vestida. O resultado não agrada, joga a blusa sobre a cama e começa uma nova empreitada. A operação repete-se e a pilha de roupas lançadas se avoluma. Finalmente algo lhe parece adequado e veste.  O jeans colado ao corpo enfatiza as curvas, a camiseta curta deixa o umbigo à mostra, como gosta, e o sapato, combinando, reforça o conjunto. A imagem no espelho lhe contenta. Está pronta para o encontro com os amigos. Sai do apartamento e segue caminhando, a casa aonde vai não é distante. Na pressa, a escolha das roupas demorara mais que o previsto, opta por um caminho mais curto, embora perigoso. Na escuridão de uma via é abordada de forma indesejada. Rejeita o contato. O homem insiste, diz que o não de uma mulher significa sim e, com força, domina-a. O estupro se desenrola. Após toda violência, o homem, vai embora como se nada houvesse ocorrido. A moça, jogada no chão, chora. Nojo, vergonha, tristeza, impotência, múltiplos sentimentos negativos a invadem. Denuncia o ocorrido à polícia e descobre que não é um caso isolado. Há vários relatos em sua cidade e uma estimativa de que um bilhão de mulheres tenham sido violentadas no mundo.

A violência contra a mulher está presente mundo afora. Considerando o elevado número de ocorrências, é evidente que as ações contra as agressões têm sido tímidas e ineficazes. Em muitos casos, as tentativas chegam a ser desastrosas. Em Toronto, por exemplo, o policial responsável por fazer uma palestra para esclarecer sobre o tema, disse às moças presentes que, para evitar estupros ou outras violências, deveriam parar de se vestir como vadias. A fala do policial reitera uma ideia muito difundida, a de que as mulheres são responsáveis pela violência que sofrem. Em resposta ao discurso do policial, os estudantes se organizaram e lançaram, em 2011, a “Slut Walk”. Realizada em várias cidades, a marcha conquistou o mundo e no Brasil ganhou o nome de Marcha das Vadias.

Algumas mulheres não gostam do nome do movimento. Entretanto, é preciso lembrar que a nomenclatura deriva diretamente da acusação de que é a mulher, ao se vestir como vadia, que induz a agressão. Remete ao discurso do policial canadense e a lógica de culpar a vítima. Ao assumir a terminologia de vadias, as mulheres estão dizendo que têm o direito de se vestir como quiserem de dispor de seu corpo da forma que melhor lhe aprouver e que isso não é motivo para ser agredida, violentada, estuprada. O uso do termo vadia neste contexto assume um novo significado. Deixa de ser um termo pejorativo para ser um rótulo “que concede à mulher a liberdade de ser, se vestir e pensar de acordo com suas vontades”.

A carta de princípios da marcha em Brasília é clara sobre este ponto ao afirmar “Somos vadias: mulheres feministas, que lutamos em marcha contra as discriminações de raça, sexualidade, gênero, credo e classe. Temos direito a nossas vidas, e a vivê-las como quisermos e livres de qualquer forma de violência”. “Acreditamos que o fim da violência contra a mulher está diretamente ligado à transformação dos valores conservadores e hegemônicos em nossa sociedade, assim como à superação do patriarcado, de todos os fundamentalismos, da lesbofobia, da bifobia, da transfobia, da homofobia, do machismo, do racismo e do capital”. “Defendemos que todas nós temos o direito de escolher sobre nossos corpos”.

Na luta impetrada pelas mulheres contra a culpabilidade da vítima, a postura geral é a de quebrar o silêncio e denunciar que o culpado é quem agride. A Marcha das Vadias é uma tentativa de mudar este quadro onde as mulheres são colocadas como seres de segunda ordem. Macapá tem sua Marcha das Vadias desde 2012 com a participação de homens e mulheres. O tema da segunda edição, ocorrida em 2013, foi “Um bilhão que se ergue”, justamente para mostrar que as mulheres que foram violentadas estão se posicionando contra a agressão. Este quadro não deve persistir. É preciso quebrar o silêncio e denunciar. Temos que assumir posição e transformar este mundo, para que todos os sete bilhões que somos sobre a face da Terra tenham, de fato, os mesmos direitos e liberdades.

Publicado originalmente no jornal Tribuna Amapaense, nº 362, 15 de junho de 2013.

*O título na publicação impressa do Tribuna Amapaense foi “Um bilhão”.

Outros textos de Arley Costa podem ser lidos em https://arleycosta.wordpress.com/entrelinhas/

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