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Fuscas, praia e neutralidade na internet

fusca e fusquinha 2

Fusca 2013 e fusca da década de 70

Verão escaldante, sol brilhando no céu e calor de fritar ovos no asfalto. Esbaforido e suando muito, João decide ir à praia com a família. O fusquinha da década de 70 é uma relíquia que a duras penas ele mantém conservado. Pintura em dia, para-choque reluzente e um motor que lembra um gato a ronronar. Família dentro do fusca, ele dá a partida e segue para a rodovia. Todos alegres antevendo os prazeres das brincadeiras na areia e no mar. Nas ruas da cidade, o fusquinha que apesar da idade ainda chega aos 140 km/h é ladeado por um fusca 2013 que alcança 225 km/h e vai de zero a 100 km/h em 7,5 segundos. Ambos chegam à rodovia e, independente da velocidade que o motor permite andar, o fusquinha terá que ir mais devagar. A legislação vigente diz claramente que carros de baixo valor no mercado possuem velocidade máxima permitida de 60 km/h, enquanto carros mais caros podem andar a 180 km/h. A viagem de João e sua família durará três vezes mais que a do dono do novo fusca apenas em razão do modelo e valor dos carros, independente da potência e capacidade de cada um.

Atribuições de velocidades diferentes para conteúdos diversos na internet é uma das questões envolvidas com o Projeto de Lei que trata da regulamentação da rede mundial de computadores. A proposta do Marco Civil da Internet que tramita no Congresso Federal chegou cercado de boas intenções como estabelecer direitos e deveres de internautas e prestadores de serviços como os provedores de acesso, além de combater a ciberespionagem. Originado em 2009, o Projeto de Lei tem provocado discussões importantes em vários espaços. Não apenas no congresso obviamente, mas em todos os locais onde há pessoas afeitas ao mundo da internet.

Um dos temas mais debatidos em razão de sua relevância tem sido a neutralidade da rede que se baseia no princípio da neutralidade. Segundo esse princípio, todas as informações devem ser tratadas da mesma forma e viajar pela rede na mesma velocidade. Atentemos para o fato que isso é diferente da contratação de pacotes com diferentes velocidades. Em um pacote de menor velocidade, a entrada e saída de dados do seu aparelho (conectado ao servidor) será mais lenta do que se você contratar um pacote de maior velocidade, mas uma vez que a informação chegue à rede, independentemente do pacote contratado, ela seguirá pela internet com a mesma velocidade de qualquer outra.

internetA atual ausência de discriminação de transmissão dos dados em razão do conteúdo é uma das razões que permitiu à internet ser um ambiente livre, democrático e capaz de divulgar informações das mais diversas matizes políticas e ideológicas. Entretanto, há um lobby pesado por parte das grandes corporações que pretende mudar essa democracia da rede mundial através de alterações nos artigos do Projeto de Lei que trata do Marco Civil da Internet. O lobby das empresas de Telecomunicações e da indústria do Copyright conseguiu adiar a votação do projeto até esse final de 2013 e, durante esse tempo, tem conseguido alterar alguns artigos e conquistar cada vez mais adeptos entre os parlamentares.

O que motiva as empresas de telecomunicações é o desejo pelo controle técnico do funcionamento da internet. Dessa forma, teriam poder de favorecer alguns provedores, sítios, blogs ou informações em detrimentos de outros. Quem detiver esse controle pode determinar que conteúdo segue mais rápido e é encontrado com mais facilidade. Isso favoreceria a transmissão das informações de grupos de notícias fortes como aqueles que hoje dominam as telecomunicações brasileiras. Tal estrutura, se aprovada, restringirá o acesso das pessoas a variedade de conteúdos que hoje a internet disponibiliza e que a constituiu como um ambiente livre e democrático. Será um bloqueio efetivo ao “compartilhamento de bens culturais e (…) a livre criação de conteúdos, plataformas e tecnologias” conforme indicado na Carta de Olinda em Defesa do Marco Civil da Internet no Brasil.

Todos os processos de mídia devem ser democráticos para permitir as mais variadas expressões de ser do brasileiro que acessa a rede mundial de computadores. Por isso, cito novamente a Carta de Olinda: “Não aceitamos que os controladores da infraestrutura física da Internet imponham qualquer tipo de filtragem ou interferência política, econômica, comercial, cultural, religiosa, comportamental, por origem ou destino dos pacotes de dados que transitam na Internet”.

O nosso fusquinha de usuário e o fusca dos controladores de infraestrutura são diferentes, o nosso é de 70 e o deles é de 2013, mas a velocidade máxima permitida para que passeemos nas rodovias deve ser igual. Não pode haver donos das ruas, do trânsito, da informação, da cultura, das escolhas. Cada um com seu fusca, mas com neutralidade na rede! Só assim todos terão o direito a partilhar dos prazeres da praia da internet!

Publicado originalmente no jornal Tribuna Amapaense, Nº 387, 07 de dezembro de 2013.

Outros textos de Arley Costa podem ser lidos em https://arleycosta.wordpress.com/entrelinhas/

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